Da literatura para o cinema: a “magia” da adaptação
- Pedro Henrique Pinheiro
- 24 de mai. de 2017
- 7 min de leitura

“É impossível transpor a esfera literária para o cinema”, afirma o autor Guilherme Fuiza, que escreveu “Meu Nome Não É Johnny”, livro que foi adaptado para o cinema em 2008. Para ele, a redução da riqueza dos detalhes é uma realidade para qualquer adaptação. Ao levar isso em conta, podemos pensar em vários exemplos de livros que foram adaptados para o cinema, inclusive o universo de Harry Potter (foto acima). Nessas adaptações, há um nível de fidelidade que é passível de ser questionado. No entanto, o processo de transformação de um livro em um filme é mais complicado do que parece.
Há certa contradição nisso, uma vez que o cinema, desde seus primórdios, utiliza-se de obras literárias como ponto de partida. Desde clássicos como “Drácula” e “O Grande Gatsby” até os filmes de Harry Potter, o número de adaptações cresce cada vez mais com o passar dos anos. Se dá tão certo, isso prova que não é tão impossível assim recriar uma obra em outra plataforma, e que isso se mostra uma alternativa minimamente lucrativa para a indústria cinematográfica.
Harry Potter é, antes de qualquer coisa, um fenômeno literário. J.K. Rowling não é uma diretora de cinema, mas uma escritora, que em sete livros conseguiu criar um universo que conquistou muitos, sejam eles jovens, adultos, homens, mulheres... Esse grupo nada seleto inclui também diretores de cinema, que viram na obra de Rowling matéria prima para um sucesso da indústria cinematográfica.
O bruxo mais famoso da cultura pop surgiu há exatos 20 anos, enquanto a exibição do primeiro filme data de 2001. Os filmes originaram-se de uma negociação dos direitos do universo criado por Rowling, entre ela e a empresa Warner Bros. Steven Spielberg – responsável pela direção de séries de filmes como Jurassic Park e Indiana Jones – foi recrutado para dirigir o filme, mas recusou a oferta, alegando não se sentir pronto para fazer um filme destinado a um público juvenil.

Guilherme Fiuza diz que a linguagem entre cinema e literatura é muito diferente.
Sob comando da Warner, foram produzidos oito filmes para contar o que se passa nos sete livros originais. O sucesso fez com que a franquia se tornasse a segunda mais rica da história, perdendo apenas para o universo da Marvel, que conta com adaptações de histórias em quadrinhos. A literatura e o cinema podem, sim, se entender.
Adaptar um livro para as telonas, no entanto, pode parecer um desafio maior do que parece. Há nesse processo vários fatores limitantes, desde a criação do roteiro adaptado até os cortes finais. Cabe à indústria cinematográfica o trabalho de saber o que deve e o que não deve entrar na adaptação. Agradar a todos é um desafio quase inalcançável.
Muitos alegam que um dos problemas principais acerca das adaptações se dá pela falta de profundidade dos filmes. Nos livros, existe um detalhamento de espaços, de personagens e de momentos que não é cabível dentro de um filme. O filme costuma ser mais limitado, por diversos fatores; orçamento para produção e o tempo limitado fazem com que a riqueza de detalhes seja reduzida. Isso desanima muito os fãs que começaram através da leitura, pois sentem falta de um elemento ou outro que acaba sendo importante ou, no mínimo, marcante no livro.
É mais complicado do que parece
Guilherme Fiuza conta que recebeu propostas de seis diretores diferentes para o filme baseado em “Meu Nome Não É Johnny”, mas apenas a proposta de Marisa Leão o convenceu.
- A proposta dela me convenceu porque ela objetivava uma biografia do protagonista, e não fazer um filme clichê que mostrasse apenas o lado ruim dos traficantes, como outras propostas que recebi - conta Fiuza.
Ao autorizar uma adaptação, o escritor entrega sua obra nas mãos do diretor e das pessoas envolvidas na produção do filme. Fiuza afirma que é necessário se desapegar de seu livro, pois ele vai ser alterado.
Ele resolveu deixar o processo nas mãos da indústria, o que incluía escolha de atores e de locações. Apesar da sensação de ter perdido o controle da produção do filme, ficou satisfeito com o resultado final da adaptação de “Meu Nome Não É Johnny”.
- Acho que tiveram uma boa sacada na linguagem visual. Foram espertos nesse ponto - reconhece.
Mas não é sempre que há consenso entre o escritor do livro e o diretor do filme. Brigas entre a autora P.L. Travers e a Disney ficaram famosas nos anos 60 por conta de uma adaptação de “Mary Poppins”. Originalmente uma série de oito livros, a adaptação feita pela Disney não foi bem aceita pela autora. Travers pediu alterações no roteiro diversas vezes. Ela não gostava das sequências de animação, e tampouco de Julie Andrews interpretando a personagem principal. Para a autora, Julie foi mal dirigida, além de considera-la bonita demais para interpretar Poppins.

Julie Andrews, não aprovada pela autora, interpretou a personagem Mary Poppins na adaptação do livro
Como justificativa para elementos tão diferentes entre um livro e seu filme adaptado, Guilherme defende a questão do “ritmo cinematográfico”:
- Isso justifica algumas escolhas que entram ou não para os filmes. Em um livro, você consegue apresentar um personagem de forma completa em duas páginas. No filme, precisa haver a preparação para uma cena que o introduza - afirma o escritor.
O roteirista de cinema e também escritor Marçal Aquino defende que toda narrativa carrega em si mesma uma linguagem visual, mas que, na prática, não consegue ser completamente transposta.
- Literatura é uma linguagem, cinema é outra. O que pode existir é um diálogo, observadas as especificidades de cada um desses universos. Acredito que uma adaptação é apenas uma leitura de um livro numa outra linguagem, no caso a audiovisual - diz Aquino, que escreveu e ao mesmo tempo fez o roteiro para a adaptação “Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios”, de 2012.
Filme versus livro
Marçal Aquino tem certeza de que nenhuma ameaça paira sobre a literatura, e que pode haver harmonia entre ambas as partes.
- Mesmo em tempos cibernéticos, sempre vai ter gente se emocionando com livros - diz o roteirista.
As adaptações, sejam elas filmes ou séries, vão atrair tanto consumidores de conteúdo audiovisual, que não necessariamente têm familiaridade com o assunto, quanto os leitores, aqueles que conheciam a história antes mesmo dela ser adaptada.
No entanto, uma das maiores preocupações é a expectativa que se tem de um filme que está surgindo de uma adaptação. Críticos de cinema muitas vezes analisam esse tipo de filme pelos motivos já discutidos acima. Alguns, no entanto, sempre defendem o filme, seja pelo espetáculo visual que ele proporciona, seja pela atuação dos atores ou pela tentativa de transformar palavras em imagens. E aí começa uma “guerra”, bem conhecida no mundo nerd: o filme contra o livro.
A opinião dos jovens
Um post do site “BuzzFeed Brasil”, site de humor e de cultura pop, reuniu quase 40 elementos presentes nos filmes que são capazes de incomodar fãs da história original. Entre eles, estão presentes cenas como Harry quebrando sua varinha no último filme da franquia, que não estavam presentes no conteúdo dos livros. Além das cenas, o post cita elementos deixados de lado pelas adaptações, que acabaram simplificando o último labirinto do Torneio Tribruxo, em “Harry Potter e o Cálice de Fogo”.
As opiniões divergem para o estudante Bruno Barros. Para ele, se existe algum fator que prejudicou os filmes, esse fator foi a mudança constante de diretores. A saga cinematográfica passou pela direção de quatro pessoas, e cada um colocou um pouco do seu jeito de contar a história em seu respectivo filme. Mas isso não desanimou Bruno, que ainda elogia os longas mesmo conhecendo as histórias dos livros.
- Eu acredito que é por isso que se chama ‘adaptação’: são canais diferentes, plataformas diferentes para se contar uma mesma história - conta ele.
Luísa Newlands, também estudante, sempre se interessou por cinema, e essa é uma questão que a intriga.
- Grande parte das explicações estão só nos livros, sendo pouco abordadas nos filmes. Elas ajudariam muito a entender melhor o universo bruxo, principalmente em relação à economia e à política bruxa, temas fundamentais para o desenvolvimento da história que acabaram sendo tangenciados pelos filmes - conta Luísa, que defende que as adaptações de Harry Potter são muito boas, apesar da ausência de alguns elementos.
Mas há um fator positivo nisso tudo. Muitos começaram a se interessar pelo universo mágico de J.K. Rowling justamente por causa dos filmes. Deles surgiu o interesse pelos livros, como é o caso da estudante Nathalia Bottino. Ela falou que, ao começar a ler os livros, percebeu elementos que não estavam presentes ou que estavam pouco detalhados nos personagens: passagens que resultariam em boas cenas e personagens secundários que não tiveram espaço para brilhar nas adaptações. “Eu não imaginava que tinha tanta coisa a mais. Quando eu li, explicam muita coisa do Lord Voldemort, que até sensibiliza mais o leitor. Seriam coisas que se encaixariam muito bem no filme”, defendeu Nathalia.
Tal como Julie Andrews no papel de Mary Poppins, a atriz Emma Watson talvez não tenha convencido todos de primeira ao interpretar Hermione. Na descrição original da personagem no livro, Hermione tinha cabelo crespo e tinha dentes grandes. Inclusive, uma prótese para deixar Emma com os dentes maiores chegou a ser feita, mas, já que atrapalhava a fala da atriz, resolveram deixar de fora. Nathalia acha que a adaptação alterou um pouco essa personagem. No entanto, de acordo com ela, “quando o ator é bom, pode até destoar da aparência proposta pelo livro original. É a atuação dele que vai me convencer se aquilo é válido ou não”.

Audição das três crianças para o primeiro filme da saga (2000)
Marçal Aquino classifica como “besteira” a incansável busca de fãs por fidelidade em obras adaptadas. De acordo com ele, “adaptar é uma oportunidade de estabelecer um diálogo entre duas formas de expressão, ampliando as possibilidades de uma obra extrapolar os limites da linguagem em que foi criada originalmente”. Diante disso, encarar uma crítica é sempre algo complicado ou, no mínimo, mais difícil do que parece.
A saga de Harry Potter, exibida em oito filmes de sucesso, mostrou que literatura e cinema podem se entender quando ambos estão dispostos a ceder alguma coisa. Embora J.K. Rowling não seja roteirista ou diretora de cinema, a forma com que descreveu as aventuras dos bruxos facilitou a vida daqueles que tiveram de adaptar os sete livros da série para o telão.
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