Mitologia Grega é um dos segredos do sucesso da saga, dizem especialistas
- Ana Nogueira e Verena Marin
- 29 de mai. de 2017
- 10 min de leitura

Um dos ingredientes da fórmula de sucesso que mantém a saga escrita por J. K. Rowling entre os negócios mais lucrativos da indústria da literatura e do cinema é a mitologia que atravessa toda a estrutura da obra - figuras como o hipogrifo (foto acima), uma mistura de águia, leão e égua. É o que garantem as professoras de Mitologia Isabela Leite e Miriam Sutter, do Departamento de Letras da PUC-Rio, e Rosângela Nunes, de Comunicação.
No mundo todo foram vendidos cerca de 450 milhões de exemplares dos sete livros que compõem a série. No cinema, os oito filmes renderam US$ 7,7 bilhões. Segundo Miriam Sutter, as aventuras vividas pelos heróis mitológicos fascinam a humanidade porque refletem anseios e desejos internos do homem. "O mito permite mexer com estruturas que estão no nosso inconsciente", explica a professora.
Rosângela Nunes acredita que o fascínio pela mitologia seja tão grande, que incentivou jovens a estudar o tema. "Eu acho que esses livros levaram muita criança que nem queria saber de escola, de volta para a escola".
— Harry Potter não teria sido como é sem a influência dos mitos. Em cada filme você sente a mitologia grega. A estrutura do conto infantil é ainda do mito grego, sempre será, porque os mitos permeiam o nosso imaginário de forma quase subliminar - garante Isabela.
Miriam conta que na cultura ocidental, com o desenvolvimento da ciência, o homem se desprende da vontade divina e passa a ser dono de si mesmo. Entre o fim do século XIX e o começo do século XX, o homem percebe que há uma parte que ele próprio não conhece dentro de si, o inconsciente. Ao compreender isso, sofre com o que é chamado “desencantamento do mundo”, compreende-se sozinho e responsável pelos próprios atos.
— É por isso que o nosso anseio pela magia é grande. O que é que envolve a fantasia? Qual é o nosso maior medo, mas que também é a nossa maior certeza? É que somos mortais. E como é que eu venço a morte? Só pelo fantástico, só pela magia. E essa magia ou consciência lógico mítica se opõe ao racionalismo do mundo tecnológico científico que impera por conceitos. Então acho que esse é o grande móvel que atraiu, que chamou a atenção para o romance - disse Miriam.
O mito do herói
De acordo com Miriam Sutter, na literatura greco-latina e em todas as literaturas, há fundamentação do mito do herói. A professora Rosângela Nunes relata que o herói na mitologia é sempre uma figura, em princípio, humana e comum. Mas, no decorrer da vida, se revela que nele há algo especial, diferente dos demais. Esse processo é a catástrofe trágica, que revela que o herói sabe muito pouco sobre si mesmo. A catástrofe implica na busca pelo autoconhecimento. O herói não tem um nascimento normal, segundo Rosângela:
— Harry é atacado por um bruxo maligno, o que resultou na morte dos pais. Ele se salva, mas carrega uma marca. Ela lembra que Édipo também possui uma marca. Quando bebê, Édipo tem os pés presos a ganchos e fica com o andar torto.

Marca é feita pelo vilão Voldemort quando Harry é ainda bebê.
— Desde o começo da história, o herói já tem um conhecimento singular e o mais bonito nessa construção da mitologia é que nesse processo ele vai conhecer a ele mesmo. O processo da vida humana é fascinante, difícil para todos e implica sobretudo o sofrimento. Porque no processo de catástrofe está implicado um caminho de desconstrução — reflete Rosângela.
A professora recorda que Harry foi criado por tios completamente avessos à magia e a tudo que é considerado metafísico ou demoníaco. Além disso, escondem de Harry a verdadeira história sobre a morte dos pais do menino, que acredita que sobreviveu a um acidente de carro, mas que os pais não resistiram. Harry cresce sem saber quem realmente era e é maltratado pelos tios. Desde sempre, o bruxo se opõe ao modelo de criação que recebeu e, como consequência, carrega ideias e valores sobre si mesmo.
— Ele precisa ser retirado daquela situação precária em que vivia e ser levado ao lugar onde vai poder desenvolver os conhecimentos necessários, sua verdadeira origem — ressalta Rosângela.
Ela conta que, na história de Édipo, é o oráculo quem o arranca da vida que ele tinha e o lança para a aventura. Em Harry Potter, é o bruxo Hagrid que o põe face a face com uma nova realidade ao tirá-lo da casa dos tios e levá-lo para a Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts.

— O herói está em busca de uma realização, de uma plenitude. São as etapas da nossa vida que passamos a todo momento, mas na adolescência elas são mais à flor da pele —, diz Miriam.
Outros arquétipos que estão presentes na trajetória do herói são: o guardião, os inimigos, as provações e o mentor. A figura do guardião é representada pelos personagens Hermione Granger e Rony Weasley. Ambos são melhores amigos de Harry e o acompanham por toda a trajetória. No entanto, Rosângela Nunes destaca o papel de Hermione:
— Ela não descende de nenhuma família de bruxos, mas tem poderes e é mais consciente desses poderes do que o próprio Harry. Ele está ali, mas está aprendendo e o aprendizado dele as vezes é estupidamente lento. A Hermione está sempre puxando as aventuras.

Rony e Hermione são os guardiões de Harry.
Ao longo da trajetória, o herói enfrenta inimigos e provações que o fortalecem e encaminha para a batalha contra o inimigo final, que é também a prova mais difícil. Na obra de J. K. Rowling, essas figuras são, muitas vezes, professores de Hogwarts, que são também bruxos muito poderosos. Rosângela destaca que eles não são personagens boazinhas ou simpáticas e que entre eles há seres perigosos. Para vencer essas provações, além da ajuda dos guardiões, Harry conta com um mentor para treiná-lo e fornecer informações sobre os perigos a serem enfrentados. Esse papel é executado pelo diretor de Hogwarts, Alvo Dumbledore.
— Ele é uma espécie de protetor que lida com essas forças opostas. Ele sabe quem é quem, mas acolhe a todos, tanto bons quanto maus. É uma figura sábia, porque a sabedoria tem a ver com isso: acolher a todos — afirma Rosângela.
O ápice do mito do herói é a catábasis, o encontro com a morte. Segundo Isabela Leite, o herói precisa passar pelo encontro simbólico com a morte para se tornar mais forte:
— A cada livro, Harry Potter tem esse encontro com a morte para poder chegar no final, quando ele tem o encontro verdadeiro com a morte. Os heróis gregos também tinham. Ulisses, Perseu e Teseu visitaram o mundo dos mortos. Então é fundamental, e Rowling sabe muito bem disso.

A catábasis de Harry Potter.
Isabela explica que toda vez que o herói entra em contato com o mundo dos mortos, ele retorna mais poderoso. Ele confronta a morte e as trevas e tem a revelação de um poder maior. Segundo ela, ele adquire um domínio sobre as trevas, que também são interiores.
Miriam Sutter fala sobre o arquétipo sombra, que surge nos momentos de medo. Ao enfrentar as dificuldades, os mistérios, Harry enfrenta categorias que são sombra para ele. "E, ao enfrentá-los, são reintegrados no eu, o que resulta em um crescimento", completa.
Para Isabela é por isso que Harry Potter, no último desafio, só consegue vencer Voldemort ao morrer. "É tipicamente o que acontece com o herói grego. É um momento de renascimento poderoso". A professora acredita que a construção do mito do herói dentro da obra de J. K. Rowling tenha sido proposital:
— Quem escreve contos infantis já deve ter se interessado por contos de fadas e mitos que falam sobre uma estrutura do conto infantil, de heróis, de Perseu, de Teseu, que inspiram as sagas atuais.
Para ela, ainda que não tenha sido de propósito, é fascinante perceber que os contos infantis ainda usam imagens antigas dos mitos.
Personagens mitológicos

Em Harry Potter, Argus Filch (foto ao lado) é o zelador de Hogwarts. Na mitologia grega, Argus aparece no mito de Zeus. Zeus se apaixona por Io, que engravida e é perseguida por Hera, esposa legítima do Senhor do Olimpo. Para proteger Io do ciúme destruidor de Hera, Zeus transforma a amante grávida em uma vaca e a esconde em um rebanho. Ainda assim, Hera a encontra e a sequestra, colocando-a sob a guarda de um dragão de 100 olhos. Enquanto 50 olhos dormiam, 50 ficavam acordados, assim ele vigiava dia e noite. Zeus, então, ordenou que Hermes matasse o dragão, o que ele realizou. Os 100 olhos foram colocados na cauda do pavão, ave simbólica da deusa Hera.
— Argus é esse monstro de 100 olhos que não dorme nunca, que era o guardião de Io, e é representado na figura do guardião da escola — explica a professora Miriam.
Em Harry Potter, Fofo é o cão cérbero que guarda a pedra filosofal no primeiro volume da série. Na narrativa mitológica, Cérbero é o guardião do mundo dos mortos, reino de Hades e Perséfone. Em algumas versões, o cão possui três cabeças, em outras 50 ou 100 cabeças. Ele aparece pela primeira vez no mito de Teseu, que desce ao mundo dos mortos com o amigo Pirito para resgatar a esposa imortal. Como passaporte, eles deveriam levar bolos de mel para Cérbero. O cão aparece também no mito de Héracles. Um dos doze trabalhos do herói é levar Cérbero para o rei Eristeu.

Fofo, o cão Cérbero.
A professora Rosângela Nunes chama a atenção para a importância desses guardiões híbridos tanto na mitologia grega quanto na obra de J. K. Rowling. Segundo ela, eles representam a linha de fronteira que separa o mundo normal do mundo mágico. Quando o herói fica diante do conhecimento de algo muito secreto, ele encontra essas figuras. Eles estão presentes em todas as literaturas e Rowling faz uso desse recurso.
— Em cada uma das histórias da saga, você tem uma aventura que envolve a luta contra essas figuras híbridas monstruosas, porque elas são o signo de que existem portas que permitem a passagem para uma dimensão mágica, oculta, e tenebrosa, onde algum segredo é guardado - argumenta Rosângela.
Sibilas são personagens históricas que, de fato, desempenhavam um papel na sociedade grega. De acordo com a professora Miriam Sutter, as sibilas eram as profetizas do deus Apolo e proferiam oráculos. Elas eram moças reais, do povo, que eram escolhidas pelos sacerdotes e recebiam Apolo quando estavam em transe dentro do templo.
— A sibila de Cumas, é a mais famosa, da Magna Grécia. E em Delfos eram as pitonisas. São todas a mesma coisa — explica a especialista.
Em Harry Potter, Sibila Trelawney é a professora de Adivinhação de Hogwarts. Trelawney é desconsiderada pelos alunos e vista como uma fraude. No entanto, faz duas previsões importantes: a primeira se refere à criança que nasceria no fim do sétimo mês e seria marcado como igual pelo Lorde das Trevas e, no final, um deveria matar o outro. A profecia se concretiza quando Voldemort ataca Harry ainda bebê. A segunda acontece em Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban, terceiro volume da série, quando a professora prevê o retorno do servo fiel para junto do mestre, que ressurgiria. Na mesma noite, Pedro Pettigrew fugiu para junto de Voldemort e foi peça chave para o renascimento do vilão.

Sibila Trelawney é a professora de Adivinhação de Hogwarts.
Na saga de Harry Potter, Cassandra é a escritora de uma cartilha de magia. Na tragédia grega, Cassandra aparece no primeiro conto da Oréstia, de Ésquilo. Figura imponente, Cassandra aparece como escrava do rei Agamenon. No entanto, Cassandra é uma princesa de Tróia, filha do rei Príamo e da rainha Hécuba. Quando jovem, Cassandra foi amada por Apolo, e prometeu se entregar a ele. Em troca, ele deu a ela o dom da visão do passado, presente e futuro. Mas, Cassandra descumpre a promessa e rejeita o deus. Sem poder tomar o presente dado, Apolo cospe na boca de Cassandra, em vez de beijá-la. Assim, Cassandra fica cacófona. Então, ela permanece com o dom e tudo o que prevê é verdade, mas ninguém acredita. Todos acreditam que a mania de Cassandra não é sagrada, inspirada pelos deuses, mas sim um tipo de demência.

Hermione Granger (foto ao lado), na obra de Rowling, é a melhor amiga de Harry Potter. Dentro da mitologia, Hermione é filha de Helena e Menelau. Ela é uma princesa e é abandonada pela mãe aos nove anos de idade, quando Helena foge para Tróia com Páris, dando origem à guerra. Mais tarde, Hermione casa-se com Neoptólemo, filho de Aquiles. Após algum tempo de casamento, ela manda matar o marido depois de descobrir que ele a traía com Andrómaca, esposa do rei Heitor, e que Neoptólemo recebeu como presa de guerra e escrava. Depois, Hermione se casa com o primo, Orestes, e se torna rainha de Esparta, Missenas e Épiro. Além disso, Isabela Leite percebe a presença de características de deuses na construção do personagem Hermione feita por Rowling.
— Há traço de Hermes, pelo próprio nome, e de Atena, que eram os guardiões do herói na mitologia grega - afirma a professora.
A recepção do público
Isabela Leite afirma que, com o lançamento de Star Wars, houve um boom da mitologia. Mas depois de Harry Potter teria havido um boom ainda maior, dando origem a obras como a saga de Percy Jackson, que é explicitamente sobre contos mitológicos. Para a especialista, J. K. Rowling contribuiu para abrir a cabeça dos jovens para os mitos:
— Ela foi promotora de uma abertura cultural muito grande. Aumentou o interesse dos leitores e espectadores para os comportamentos, pelas situações do herói diante das circunstâncias que se repetem em Harry Potter.
Miriam Sutter ressalta que, atualmente, muitos produtos recorrem a esses conhecimentos para trabalhar com a fantasia, com o mundo fantástico. Mas defende que a série Harry Potter tenha ajudado a aumentar o interesse do público pelo mundo mitológico.
- E as editoras devem logo ter produzido livros explicativos. Então sempre é bom para levar esse conhecimento a um público maior - reflete Miriam.
Rosângela Nunes defende que a saga despertou nas crianças o desejo pela magia, pela aventura e a capacidade de imaginar para além das aparências do mundo que conhecem e vivem. Segundo ela, essa magia é primordial para o desenvolvimento da capacidade criadora. Rosângela acredita as que histórias da mitologia e da literatura são fundamentais para a construção da ideia de que a realidade não termina exatamente onde os sentidos dizem que termina. "O mito tem essa força literária de recuperar alguma coisa que é essencial para nós".
A professora alega que é importante que o personagem central seja uma criança, como Harry Potter, que está na idade da imaginação e tem uma vida toda pela frente. "Harry está no momento em que começa a compreender determinadas coisas e ter tudo isso, todas essas aventuras acontecendo… Isso é lindo, maravilhoso".
Para Rosângela, a leitura exige um esforço de compreensão, de interpretação e imaginação. Parte dessa imaginação é dada pelo texto, mas a outra é construída pelo leitor. Por isso, é importante que essa obra tenha sido exportada para o cinema. O cinema ajuda a ampliar ainda mais a imaginação e, segundo a professora, esse é um processo infinito.
Professoras Rosângela Nunes, Isabela Leite e Miriam Sutter.
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